domingo, março 17, 2013

Desperto

Me maneio nas cordas d'ouro que vingam de tua nuca, tais sedas finíssimas e mui perfumadas. Olvido as mãos entre tuas coxas macias, num transe que mira devorar-te com o tato. Descubro o sabor da manhã, enfim, na tua pele, pêssego descoberto pelo frio que o arrepia, e no teus seios, entumescidos sóis a sorver.


sábado, setembro 22, 2012

Corte

Cheio, que quase transborda,  ou melhor, que está na borda, que no limite esgota.
 Ela, não raro, deixa cheio, e que estranho é o fato de não deixar da borda a transa esgotar.
 A transa goza mesmo a conversa calma, um gozo tão venturoso que não há melhor gemido que o incentive, que o mudo olhar no olho.
 O copo é corpo, transparante tal qual não é o rosto, contudo diz num gesto que a mão repete, algo que não se sabe, e que no entanto se precede, e que tanto faz adorar.
 Que conforto cerca toda essa majestade tímida, todo o gosto do seu manto de pele é exato como a saliva da pêra, a perfeita fruta de um paraíso que é real.

domingo, agosto 12, 2012

Há pássaros cantando desde a madrugada, talvez o desespero pela chegada da primavera ou, então, o destempero do inverno corrente. Essas notas todas são para quem? Não escutam que os carros lhes abafam os brados agudos ?
Eu estou aqui inerte sobre um bloco de espuma, esfarrapado em um escaninho de concreto.
Canto em coro com estes miúdos organismos que voam vagabundos a selvagem persistência de um querer que cobre o reconhecimento dele mesmo.
  Eu grito, quero e digo o que há em mim. Deixo que saibas exatamente o que sinto emaranhar aqui no peito de sabiá. Canto mesmo com medo de ser enfadonho para ti, mas sabendo que, se talvez uma tormenta me abater em pleno curso do vôo, e eu venha a sucumbir, terás ideia do valor que tinhas para mim.
 Se estou voando, você céu, é a prioridade de toda minha constituição.

segunda-feira, julho 02, 2012

Minha Cidade é Uma Mulher

Entro no ônibus e deixo que este conduza meu corpo, entro na minha alma e deixo que ela conduza minha sorte.
 Eu posso ver nos teus olhos de cidade o córrego de luzes vermelhas que se vão avenida adentro. As ruas são muitas e não há retorno possível.
 Eu percebo, eu tenho que perceber tudo. O que me leva a ser a criança com barba de Saturno não sei, e quiçá jamais saberei. Em mim a incapacidade de relatar se torna maior na mesma proporção do quanto consigo captar.
 Tenho dificuldades em fechar portas; tenho fobia de pessoas que passam; tenho um código sobre mim, e o desconheço; tenho paixão e não sei apaixonar.
 Sobre mim não há palavras, não sofrerão por mim. Não há imagens da minha alegria e tampouco da tristeza. Quando chegar o tempo talvez exista lembrança de que eu caminhei e morei dentro dos teus olhos de cidade.
 Eu vi tua pele tenra com pequenos retalhos de sol matutino; senti tuas festas e dissabores muito mais do que pensas.
  Juro que serei breve, só me deram este meu corpo pra viver-te e ele não pode durar tanto quanto seria necessário pra ser em você.
  Me vencerei, ao final, mas não serei visto...

sexta-feira, maio 25, 2012

Temo que não aguentes o que preservei sem medir...

Evangelho do Desassossego II

"A única maneira de teres sensações novas é construíres-te uma alma nova."

  Ele foi. Construiu-se de tal maneira a não temer o que se repete, o que parece consigo mesmo no passado e no porvir. Era miúdo seu laboratório, tinha o espaço que guarda os pulmões e coração.
  De quando em vez batia-lhe o sono e pensava ser homem. Sonhava labores, surpreendia-lhe o ódio, desejava glórias, acreditava em filosofias e doutrinas. Porém nada disso se sustentava, pois ele repetia baixinho a frase que lhe muda o corpo no instante em que a sente...

"-Ele me aponta todas as cores que há
nas flores e me mostra como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão e olha devagar para
elas."

sábado, maio 19, 2012

Quem diabos eu sou ? Miserável criatura... Construí essa alma com qual finalidade, já que ela vale somente uma antiga moeda que ninguém quer ?

sábado, maio 12, 2012

Crematório

Só pedi que me poupassem os livros,
Que houvesse uma caixa para lhes dar descanso
Eu não seria louco de dar a eles o que pra mim pedi
As chamas devorando minhas páginas.


 Noto que me assemelho a um cálice inexpressivo e palermo, sem o vinho que embriaga, o qual não é parte minha. Talvez meu hábito de calar os esforços para se alcançar as coisas me corroa. Penso que o desvelar a peça em construção tira-lhe o valor, pois o labor despendido só interessa ao construtor e sua paixão pela obra que ergue. Eu calo meus sacrifícios. Acaso há algum mérito para quem constrói calado ?
 A paixão espreme meus órgãos contra as paredes dos meus ossos e pele. Há uma explosão interna que permanece sempre o que é: uma explosão que desafia seu próprio significado e permanece ali, sem recolher sua expansão.
 A música feria meus ouvidos fracos, e cada crescendo era o impacto de mim contra toda a cidade que corria veloz sob as rodas do coletivo. Eu podia varrer as ruas, parques e prédios, pelos quais passava, com o potencial atômico que havia em mim....